“Ouvem falar da Palestina quando algo grave ocorre, mas cada minuto de nossa vida é violado”
Icarabe: Em seu livro, você diz a sua mãe “Tudo se trata de Palestina”. O que é a Palestina? Suad Amiry: Do ponto de vista humano é injustiça. Não digo isso porque sou palestina. É uma situação injusta como era o apartheid na África do Sul. Tenho comigo que preciso fazer alguma coisa porque sou um ser humano que vive nesse mundo, não porque sou palestina. Essa é uma situação que precisa ter um fim. Pessoalmente, a Palestina também é uma paisagem, as árvores, meu habitat natural, a minha consciência. Icarabe: Como vai sua sogra? SA: Ela está bem, com 95 anos. Viver sob ocupação gera uma enorme pressão e cria uma dinâmica complicada nas famílias. Minha sogra é um símbolo deste tipo de pressão. Ela é um símbolo da desobediência civil. É uma mulher de muita idade que, apesar da ocupação, insiste em manter uma rotina, em estar com o vestido certo. O título do livro é cheio de simbolismo. Esse equilíbrio de poder entre Sharon e minha sogra representa o mesmo entre israelenses e palestinos. O primeiro é militarmente forte e o segundo é muito insistente. Icarabe: Por que decidiu sair de Amã e ir viver na Palestina ocupada? SA: A Palestina sempre fez parte de mim, da minha memória. Pode parecer loucura, mas é mais fácil viver a situação de perto do que estar longe e sonhar com as coisas. Estou ligada à paisagem, à arquitetura, às vilas. Sou arquiteta, tenho interesse especial em contruções históricas. Realmente me apaixonei pelo lugar. Sempre foi algo muito emocional para mim. É claro que eu tenho medo das bombas, mas viver na Palestina dá sentido à minha vida. Icarabe: Como é ser uma mulher na Palestina ocupada? SA: Acredito que na ocupação todos são vítimas. As crianças são as maiores vítimas. Mas não é fácil ser homem! Você sabe, palestinos entre 17 e 30 anos são culpados até que se prove o contrário. Desse modo, fico feliz de ser mulher! Com certeza é mais difícil para mulheres com filhos. Muitas dessas mulheres ficam sozinhas com suas crianças enquanto seus maridos estão na prisão. Os riscos são emocionalmente difíceis para as mulheres. A ocupação é algo contra a qual temos que lutar, e as mulheres têm um papel importante na busca pela paz. Os homens querem ser ativistas. Nós aprendemos a fazer mais concessões do que eles. Em Israel há movimentos contra a ocupação formados por mulheres. Somos mais inclinadas a buscar a paz porque enfrentamos tudo de um modo mais sensível e mais sensitivo. Sabemos como é importante dividir nossos sentimentos. Ao contrário dos homens, não temos medo de mostrar nossa fraqueza e vulnerabilidade. Acredito que essa é a razão do sucesso de meu livro. Costumo dizer que é o livro das non-breaking news. As pessoas só ouvem falar da Palestina quando algo grave ocorre, mas cada minuto de nossa vida é violado. Icarabe: Em seu livro você diz: “Em nosso país a vida se tornou impossível.” De que modo isso se dá no cotidiano dos palestinos? AS: Não é possível ter controle da própria vida. Há uma ausência de normalidade. Não podemos planejar nem mesmo o amanhã ... ir à escola, dar aulas na universidade, trabalhar, sair de férias. Nunca se sabe o que vai acontecer no dia seguinte. Não há controle. Meu livro é sobre a vida diária de todos na Palestina. Existem 3,5 milhões de histórias como a que escrevi. Temos que pôr muita energia para ir de Ramallah a Jerusalém, o que normalmente tomaria apenas 40 minutos. Ramallah é uma prisão. A cidade tem cinco entradas: três foram fechadas pelos israelenses e as outras duas têm checkpoints. Não se pode sair com o próprio carro da cidade! É tudo muito exaustivo. Icarabe: Muitos palestinos abandonaram ou foram expulsos de suas casas em 1948. Você teve que abandonar sua casa? A ocupação mudou o seu modo de ver os fatos de 1948? SA: Em setembro de 2001 o exército israelense estava em nosso bairro. Houve muitos tiros e bombardeios. Era assustador. Infelizmente, tivemos que sair de nossa casa. Saímos em um carro das Nações Unidas e ficamos na casa de amigos. Há um momento em que se conclui que nossas vidas são mais importantes do que a casa, os móveis e os objetos. Mas, depois me perguntei: “O que é isso?”. Então, eu decidi nunca mais sair da minha casa. Em 1948, as pessoas deixaram ou foram expulsas de suas casas e nunca mais voltaram. Eles partiram pensando que ficariam fora por uma semana e já são 56 anos. Icarabe: Em alguns momentos do livro você relembra fatos da sua infância, como as férias com suas tias em Beirute. Era realmente um outro Oriente Médio ou são lembranças inocentes de criança? SA: Os dois. Naquela época era possível viajar entre a Palestina e Beirute. Hoje isso é impossível. O mundo árabe está desconectado. É um fenômeno triste. Minhas lembranças de infância vêm muito dos relatos de meus pais. Eles me contaram de viagens entre lugares como Haifa, Ramallah, Beirute e Damasco. Em todo o mundo está cada vez mais fácil se locomover entre um lugar e outro. Na Palestina é o contrário: está cada vez mais difícil. Então minhas lembranças vêm daí: como era bonito antes e como é difícil agora. É um isolamento. Icarabe: Qual o estado de destruição do patrimônio arquitetônico palestino? SA: Em Nablus, a destruição foi enorme. Algumas construções históricas, como a fábrica de sabão, foram completamente postas abaixo. Todos os ministérios palestinos foram destruídos. Tínhamos preparado o jubileu do ano 2000 em Belém. Tudo foi decorado para a celebração e destruíram todo o nosso trabalho. Foi de partir o coração. Icarabe: Como é o trabalho do Centro Riwap para a Conservação Arquitetônica da Palestina? SA: O Centro Riwap para Conservação Arquitetônica foi fundado por mim e outros arquitetos em 1991. É uma organização não-governamental e não-lucrativa. Nosso trabalho é proteger a herança cultural, natural e arquitetônica da Palestina. Em outras palavras, preservar nossa identidade. As construções palestinas têm perdido suas características históricas. O meio-ambiente e a arquitetura, em particular, têm sofrido com as sistemáticas demolições pelas forças israelenses. Construções históricas são substituídas por estruturas contemporâneas que não fazem parte da arquitetura local. As regiões montanhosas, que previnem a erosão, são substituídas por muros. Árvores são cortadas a todo momento e profissionais ligados a esses setores são cada vez mais raros porque ninguém vê mais sentido em trabalhar com pinheiros. O Riwap trabalha contra tudo isso. Temos um registro das construções históricas e detalhamentos sobre seu valor cultural e histórico; participamos da criação de leis para proteção do patrimônio natural e cultural, organizamos seminários, cursos, exibições e publicamos trabalhos para que cresça o interesse nesse assunto; participamos na criação de um plano nacional para preservação do patrimônio e publicamos uma série sobre a história da arquitetura palestina. Icarabe: Você escreve que já se recusou a sair de casa durante a suspensão do toque de recolher como um desafio à ocupação. No início do livro, diz à funcionária do Aeroporto de Lud que havia ido à Escócia para dançar. Esses desafios são uma forma de resistência individual? Um meio de preservar a dignidade em uma situação injusta? SA: Quando se vive sob ocupação – e estamos falando de uma das ocupações mais longas do mundo, com 38 anos – toda a sua vida é violada. Muitos palestinos nunca viveram sem a ocupação israelense. Então, todos acham um meio de resistir. Eu tenho sorte. Tenho um trabalho, minha renda é maior do que a da maioria dos palestinos. Mas há aqueles que estão desempregados, que vivem na miséria ... enfim, há quem pegue em armas, quem opte por demonstrações pacifistas e os o que fazem como eu. O exército israelense pode ser muito agressivo. Não é preciso fazer muito para levar um tiro. Eu tento achar caminhos kafkanianos. Tento mostrar a eles como tudo isso é ridículo. Faço piada e eles simplesmente não sabem o que fazer comigo. Eles acabam percebendo como a situação é absurda. Uma vez estava voltando da Universidade de Birzeit onde dou aulas e um soldado israelense me disse “Volte!”. Eu perguntei “O quê? Voltar?” Ele começou a gritar comigo, então eu disse “Por que está gritando comigo? Eu só quero ir para casa dormir!” Ele insistiu: “Volte!”. Então eu lhe disse: “Só volto se você me der metade de sua laranja.” Depois de hesitar, ele me deu metade de sua laranja e me deixou passar. É preciso tocar a humanidade em cada pessoa. Tudo isso se trata de manter a sanidade também. Nessa situação é muito fácil enlouquecer. Icarabe: O final do livro mostra a desobediência civil – um panelaço – em seu bairro. Isso é comum? SA: É muito mais comum do que as pessoas pensam. Toda nossa vida é pacífica. A maioria de nós não tem armas. Há demonstrações pacifistas todos os dias. Para a construção do muro foram cortadas muitas oliveiras. Então, há demonstrações diárias contra o corte das oliveiras. Mas, no final as forças israelenses atiram. A desobediência civil palestina é sempre subestimada. A primeira Intifada foi desobediência civil, assim como o fechamento do comércio e a recusa em pagar impostos. Icarabe: Enxerga uma solução para o conflito? SA: Certamente. Acho que a solução pode vir com facilidade. Poderia ser feita em 24 horas. Precisamos de um líder israelense que acredite que a terra precisa ser dividida. Os palestinos querem as fronteiras de 1967, o que é 22% da Palestina Histórica, mas os israelenses querem mais terra. Querem as terras, mas não querem as pessoas. Quando eles nos derem um dia inteiro sem que confisquem nossa terra eu acreditarei na disposição israelense para a paz. A concretização da divisão em dois estados acontecerá mais cedo ou mais tarde. O equilíbrio de poder é uma desvantagem para os palestinos. A aliança entre os Estados Unidos e Israel não tem sido positiva nem para a questão palestina, nem para o mundo. A comunidade internacional precisa intervir. Talvez o Brasil possa falar algo!(rs) Icarabe: Qual o seu sonho para a Palestina? SA: Meu sonho é que haja um Estado só. A solução de dois Estados é a realidade, mas meu sonho é que haja um Estado unindo dois povos. Às vezes digo aos israelenses: “Imagine o que diriam se construíssemos um muro ao redor de Israel?” Infelizmente, o governo israelense diz uma coisa e faz outra. É uma situação muito triste. Gostaria de que houvesse um só Estado. Seria uma Palestina aberta, com culturas, passados e grupos diferentes, todos vivendo juntos. Gosto da idéia de viver em um lugar culturalmente diverso. O Mediterrâneo já foi assim. Gostaria que voltasse a ser.